Para se chegar à casa de Elmar Freitas, na comunidade Metrô-Mangueira, no Rio de Janeiro, é preciso atravessar um cenário de guerra. Andando sobre os entulhos de casas derrubadas, como se tivessem sido alvo de um bombardeio, chega-se a um casebre isolado e maltratado, com água e luz trazidos de longa distância. Por dentro, mais destruição.
Até a pia da cozinha foi roubada por usuários de crack, vizinhos infelizes que passaram a frequentar o local recentemente. No único quarto ocupado, apenas um colchão, uma TV, e o essencial à sobrevivência. Elmar é uma das 170 mil vítimas das previstas remoções promovidas pela organização da Copa do Mundo de 2014, segundo cálculo dos Comitês Populares da Copa. Em sua comunidade, próxima ao Maracanã, metade dos antigos moradores já deixaram suas casas para dar lugar a um polo automotivo.
Reportagem da edição 181 de Caros Amigos
Observando o descontentamento deles, mesmo em meio a ratos e baratas, Elmar resiste. “Tive que sair do meu antigo emprego. Não tinha condições de ficar trabalhando com o pessoal arrebentando minha casa. Até me separei da minha mulher por causa desses problemas. Infelizmente, eu fui afetado em vários aspectos: financeiramente, emocionalmente e profissionalmente”, diz.
Elton nos recebeu vestindo, por acaso, uma camisa da seleção. Como a maioria dos brasileiros, Elton ficou feliz e orgulhoso quando soube que o país sediaria a Copa. Não sabia que os megaeventos, há cerca de duas décadas, tornaram-se mais do que competições esportivas.
Caros Amigos percorreu todas as 12 cidades sede. Por onde passou, encontrou mais fontes de queixa do que de celebração. Remoções forçadas, indenizações injustas, falta de transparência e participação popular, desrespeito a leis trabalhistas, legislação de exceção, elitização do espaço urbano, ameaça ambiental, indícios de corrupção e superfaturamento, repressão a ambulantes e à população em situação de rua, maquiagem de favelas, truculência policial, remapeamento imobiliário, e endividamento. Sem debate vultoso com a sociedade, a Copa está redesenhando 12 de nossas capitais. E há pouco o que se comemorar.
“O que não está na cabeça das pessoas é que os megaeventos esportivos são, antes de tudo, um grande negócio. Depois é que eles são um evento esportivo”, resume Olga Firk, representante em Curitiba do Observatório das Metrópoles. Na academia ou no movimento social, unanimidade. Os megaeventos tornaram-se articuladores dos interesses de diversos setores econômicos.
Manoel Nascimento, do Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), de Salvador, explica que “o setor esportivo se transformou numa alavanca de um pool capitalista que abarca esportes, mídia, produção de eventos, construção civil, transportes, turismo, etc. É uma operação de mobilização de capitais gigantesca. Somos a bola da vez. Passam com o rolo compressor, porque ‘a gente tem que fazer bonito’. Não vale mais a pena, para o capital, oferecer um espetáculo de qualidade, com a manutenção de direitos, aproveitando esse momento para melhorar a cidade. Eles só querem valorizar a cidade em função de fazer dinheiro naquele momento.”
Impacto
Há cidades, como Porto Alegre, onde já se vivencia esse problema, como na Vila Dique Nova. Em outras, como Cuiabá, está em fase inicial, na Prainha. Para a advogada Karina Uzzo, do Instituto Pólis, “a logo prazo, a gente vai ter um impacto relacionado com a política de transporte e mobilidade. Eles a direcionam para as áreas dotadas de infraestrutura, e não para os bairros de população mais pobre.”
Nas comunidades já removidas, é comum o protesto contra o longo período nos ônibus e metrôs, para chegar ao trabalho, e a despesa extra com passagem. No discurso oficial de governos estaduais, alega-se que os projetos de mobilidade – nos quais foram gastos apenas 2,14% do previsto inicialmente – vão dar conta da demanda.
“Dizem que vão resolver os problemas de mobilidade em Natal em 20 anos. Eu não acredito. O que norteia todos esses projetos é melhorar o transporte individual, do carro particular. E não o transporte público coletivo. Isso é uma perversidade. Existem estudos realizados por técnicos da UFRN que dotariam Natal de um extraordinário plano de mobilidade”, afirma Marcos Dionísio.
Em Manaus, Vasconcelos Filho, do Comitê Popular da Copa, tem a mesma preocupação. “O que nós questionamos é se essas obras resolvem o problema de mobilidade urbana. Elas devem atender à cidade, e não apenas quatro jogos de um megaevento privado”, sentencia.
Resistência
Em muitas dos projetos, é possível ver as obras “desviando” de edificações mais caras. Para Cristiano Müller, “as remoções ocorrem, sempre, para as comunidades de baixa renda, de assentamento precário. E essa informalidade desqualifica tanto a relação deles com a cidade, que eles se sentem indefesos, acham que têm mesmo que sair. Isso não é verdade. A cidade tem que ser para todos.”
Surgem, lentamente, importantes processos de resistência, não raro com vitória. O melhor exemplo talvez seja o da Vila Autódromo, no Rio. A comunidade já estava no alvo da Prefeitura desde a preparação para o Panamericano de 2007 – espécie de laboratório para tudo o que, agora, acontece no país. Os moradores se uniram, buscaram parceiros, e seguem firmes. Por ser um caso simbólico, a Prefeitura não lhes dá descanso. Alega prever um Parque Olímpico para a região. No Paraná, há outra história bonita. Em São José dos Pinhais, onde fica o principal aeroporto, previase a construção de uma trincheira.
O padre Estanislau Talma percebeu a insatisfação das senhoras que frequentavam a missa, e logo organizou reuniões e um seminário. Organizaram uma passeata pelo bairro. No dia, o prefeito se reuniu com eles e descartou a trincheira. “Nesse país, sem pressão não tem solução”, resume o padre. Em Porto Alegre, outra vitória. Ameaçados de remoção, Seu Darcy e outros moradores fecharam ruas e ocuparam a Assembleia Legislativa. Inviabilizaram o PL 388, que ameaçava de despejo a Padre Cacique, a Vila Ecológica, a Vila Gaúcha e a União Santa Teresa.
Higienização
Em todas as 12 cidades, uma frase certamente será ouvida quando se fala em Copa. “Aqui, o preço dos imóveis disparou”. É um fenômeno nacional. Embora as causas sejam complexas, sem relação direta com o evento, há uma conexão. “Todo mundo sabe que uma área que tem transporte é valorizada. E existe um direcionamento do transporte para as áreas que vão receber os megaeventos. Valorizam o imóvel de quem não precisa”, diz Karina Uzzo.
Para a população em situação de rua, o clima é de tensão. Na “cidade de exceção”, não há lugar para o que a enfeia, mesmo que seja gente. “A prefeitura quer criar albergues no sul e norte, onde dá duas ou três horas de viagem, para tirar esse povo do centro”, denuncia Leonildo Monteiro, coordenador do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) em Curitiba.
Em São Paulo, surgiram incêndios suspeitos em favelas. “Em geral, elas estão localizadas em áreas de grande visibilidade para turistas. Essa última incendiada, Favela do Moinho, fica entre duas linhas da CPTM”, diz Rosilene Wansetto, da Rede Jubileu Sul.
Há outras formas de maquiagem. A Vila das Torres, favela curitibana localizada no caminho do aeroporto, teve as fachadas das casas mais visíveis pintadas. No Rio, o Complexo da Maré recebeu supostas “barreiras acústicas” na fronteira com as principais vias do Aeroporto Tom Jobim, que tampam a visão das 16 favelas. Para a Prefeitura, a maior demanda da paupérrima região seria proteger os ouvidos dos moradores?
Há, ainda, a repressão aos vendedores ambulantes. Manaus é a cidade de processo mais intenso, por ter um gigantesco comércio informal. O governo procurou criar um camelódromo no Mercado Adolpho Lisboa. Mas o espaço era tombado, e a ação foi impedida.
Emprego
A reforma do Mineirão ameaça impedir o trabalho de 600 expositores da feirinha do vizinho Mineirinho, em Belo Horizonte. Cerca de 4 mil empregos indiretos estão ameaçados. “É uma luta danada. Só 10% dessas pessoas têm outra renda”, lamenta Antônia Lúcia Pereira, presidente da associação de vendedores. Aproximadamente 150 barraqueiros que trabalhavam no Mineirão foram afastados.
Na África do Sul, mais de 100 mil ambulantes perderam sua renda durante a Copa de 2010. No total, após o evento, o emprego anual diminuiu 4,7% no país, com a perda de 627 mil postos de trabalho. “O trabalho informal existe para que a cidade formal possa viver. É burrice reprimir”, aponta Marcelo Edmundo, da Central de Movimentos Populares (CMP) do Rio.
As remoções também causam desemprego. Muitos dos moradores das Torres Gêmeas, ocupação na região nobre de Belo Horizonte, viviam de atividades informais. Vítimas de um incêndio suspeito, tiveram que sair. A bolsa aluguel de R$ 400 só lhes permite morar longe, sem poder manter seu sustento. No local, pretende-se construir um hotel para a Copa.
Além do desemprego, há também o desrespeito à legislação trabalhista nas obras. Já houve greves em seis estádios: Fortaleza, Recife, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Brasília, Salvador. Nos bastidores, articula-se uma paralisação nacional para os próximos meses. O maior entrave são os fortes vínculos entre a Federação e o governo.
“Não querem pagar a participação de lucros e a hora-extra. O cartão alimentação, que deveria ser R$ 200, eles pagam R$ 80. O salário vem cinco dias faltando. Tem um coronel colocando a polícia para pegar motoqueiros na BR”, acusa José Vieira, operário da Arena da Copa, em Recife.
O projeto de lei 728/11, no Senado, pretende reduzir o direito à greve três meses antes da Copa e durante. Foi apresentado por Marcelo Crivella (PRB-RJ), recém promovido a Ministro da Pesca, e subscrito pelos senadores Ana Amélia (PPRS) e Walter Pinheiro (PT-BA), um ex-sindicalista. Todos são da base do governo.
Cidade Neoliberal
Como essa lei, a Copa tem promovido significativa legislação de exceção, na contramão de conquistas históricas dos trabalhadores. “Os megaeventos, pela sua dimensão e densidade temporal, agudizam uma das características centrais do projeto neoliberal de cidade, estruturado nos megaprojetos. A cidade da grande intervenção pontual, que rompe com as estruturas econômicas, sociais e institucionais”, analisa Carlos Vainer.
“Na cidade mercantil, um planejamento integrado é abandonado em favor de um grande projeto de intervenção. No debate internacional, é a dicotomia entre masterplanning e masterproject. Os megaeventos geram uma articulação muito importante das coalizões locais dos grandes empreiteiros e dos grandes proprietários de terra. O poder local é a base do megaevento. A sua busca para que a cidade se transforme assegura ao grande capital a acolhida adequada. Na linguagem do Banco Mundial é o market friendly planning, o planejamento amigável com o mercado”, explica Vainer.
Nesse processo, uma ampla legislação de exceção vai ganhando corpo nacional e regionalmente. Em cada cidade, são criadas “leis de segurança”, “leis de isenção fiscal”, “leis de restrição territorial”, “leis de transferência de potencial construtivo”. As ações do poder público para a Copa, em boa parte, rasgam a Constituição e a legislação nacional.
Em Natal, a interferência das obras em áreas de mangue é realizada sem que o licenciamento ambiental seja publicizado, e sem Estudo de Impacto de Vizinhança. A reforma da Arena da Baixada, em Curitiba, utilizou o “potencial construtivo” – instrumento do Estatuto das Cidades criado para se fazer política urbana – com o objetivo de transferir R$ 90 bilhões ao Atlético-PR, dono do estádio. Em Salvador, com a lei de uso e ocupação do solo, o gabarito aumentou para 27 andares, permitindo construir grandes apart-hotéis.
Em 2011, o Congresso Nacional aprovou o Regime Diferenciado de Contratações (RDC), que permite novas regras para licenciamento, na contramão da lei 8666/93. “Seremos os primeiros a ter RDC. Achamos um absurdo”, afirma Archimedes Lima Neto, do CREA-MT, sobre o VLT de Cuiabá.
Nesse processo, destaca-se a Lei Geral da Copa. O projeto começa interferindo na soberania nacional. A FIFA passa a ter controle sobre a entrada e saída de turistas, uma vez que há garantia de visto a quem compra ingressos. No entorno dos estádios, só a FIFA e seus patrocinadores poderão explorar comercialmente. Símbolos nacionais, como apelidos da seleção, a bandeira nacional e o hino, são privatizados – a FIFA passa a ter direito de exploração.
“O Brasil assume o papel de fiador de eventos privados”, denuncia o advogado Thiago Hoshino, da Terra de Direitos, de Curitiba. “Quanto mais forte é o controle da burocracia do estado, da máquina pública, pelas elites nacionais, melhor é para os lucros da FIFA. Porque esses lucros dependem da desconstituição de direitos da legislação interna dos países”, explica.
Na África do Sul, o processo de colonização da FIFA foi muito semelhante. “Para fazer cumprir estas concessões extraordinárias de soberania, a FIFA exigiu que o Estado criasse e financiasse juizados especiais. Um rapaz foi condenado a cinco anos por roubar o celular de um turista. Ao contrário do infeliz, os diretores da área de construção civil não vão conhecer o interior dos tribunais”, ironiza o sulafricano Eddie Cottle, autor do livro Copa do Mundo na África do Sul: Legado para quem?
Patriotismo
O currículo da FIFA talvez seja o que mais revolta as entidades. A Federação esteve, em 2011, envolvida em graves escândalos de corrupção. “O parceiro principal do Brasil tem as digitais da máfia. A FIFA é um grupo criminoso com capilaridade maior que a das Nações Unidas”, diz Marcos Dionísio (enquanto a ONU reúne 192 países, a FIFA tem 208). Na África do Sul, no mais pobre dos continentes, a entidade lucrou US$ 3,4 bilhões (R$ 6,1 bilhões).
“A FIFA e o COI são, na verdade, as cabeças de grandes coalizões de interesses econômicos de megacorporações – empresas de diferentes escalas que investem no esporte como um vetor de ampliação e valorização dos seus mercados. Mais do que entidades esportivas, são articuladoras de grandes negócios em escala internacional”, interpreta Carlos Vainer.
Na organização da Copa, utiliza-se um discurso onde tudo se justifica pela emergência. Logo, o atropelo da legislação do país, e as arbitrariedades socioambientais, são realizados sem grande resistência da população e de muitos parlamentares das três esferas de poder.
“A emergência faz com que se legitime uma remoção sem qualquer participação, e sem alternativas habitacionais concretas. As pessoas acabam comprando esse discurso pelo risco. No contexto das obras, essa emergência se dá pelo prazo. A Copa é daqui a dois anos. Por causa da emergência, você precisa tomar uma providência que é excepcional, que não está colocada pelo Estatuto da Cidade, pela Constituição e pelos tratados internacionais. A exceção torna-se regra, e vai legitimar uma série de projetos”, diz Juliana Machado, que pesquisa megaeventos e relações de poder em seu mestrado na USP.
Para se garantir a omissão ou a adesão popular, conta-se com o que vem sendo chamado de “patriotismo de cidade”, a relação de pertencimento das pessoas com o país e sua cidade. Afinal, são os espaços urbanos com os quais têm relação afetiva recebendo os megaeventos mais importantes do mundo. “A Copa chega tão forte, que você não pode falar mal dela. Porque quem fizer isso, vai ser crucificado publicamente”, diz João Baptista Silva.
“Nós gostamos de receber pessoas. O desejo de mostrar nossa cidade para os outros se volta contra nós. Esse sentimento positivo se transforma num instrumento contra nós, sendo mobilizado para que isso seja um legitimador desses grandes eventos. Há uma grande manipulação, feita através da absoluta desinformação”, analisa Carlos Vainer.
Em São Paulo, há um componente extra. O palco de abertura da Copa, em construção, será o estádio do Corinthians. A maior torcida paulista vai, enfim, ganhar o seu templo. Nas proximidades, é comum ver pessoas tirando fotos das obras. Os operários trabalham com orgulho. Ainda mais quando Ronaldo, antigo craque do time, e agora empresário vinculado à CBF, promete organizar uma “pelada” com eles.
Elitização
Esse elemento diferencia o Brasil dos outros países que receberam a Copa. O país do futebol, pentacampeão mundial, tem uma forte relação simbólica com o esporte. “Moro a três minutos do Maracanã. Quando eu era criança, eu não queria morar em Copacabana, em Ipanema. Queria morar no Maracanã. Seria o auge. Hoje, passar pelo Maracanã é extremamente doloroso”, afirmou o historiador Luiz Antônio Simas, em palestra sobre os impactos da Copa.
“O futebol, no Brasil, é uma coisa ludicamenten séria. É um negócio que transcende o esporte. Está muito ligado à formação social no Brasil”, diz. Para Simas, talvez estejamos vivendo um processo inverso ao do início do século passado. Se o futebol começou como um esporte elitista, praticado e acompanhado pelas elites, chegou aos anos 1930 mais popular. Nosso grande craque, Leônidas da Silva, já era negro.
Hoje, estaríamos vivendo um lento processo de elitização. A Associação Nacional de Torcedores (ANT) surgiu em 2010 com essa bandeira: o combate à elitização. Christopher Gaffney, ex-jogador de futebol dos EUA, hoje professor da UFF, é vicepresidente da ANT. Para ele, esse processo se dá “de três maneiras: 1) a destruição dos patrimônios culturais; 2) o preço abusivo dos ingressos; e 3) a privatização do espaço público.”
A primeira delas fica evidente com o exemplo do Maracanã. Mesmo sofrendo duas reformas na última década, está sendo praticamente reconstruído. O novo Maracanã não terá os espaços populares que o consagraram. O segundo item fica evidente com o Campeonato Brasileiro, cujo preço dos ingressos cresceu 72% nos últimos cinco anos. O Maracanã também confirma o terceiro item. O governo já anunciou a intenção de, futuramente, privatizar o estádio. E Eike Baptista, de sólidas alianças com o governo estadual, anunciou o desejo de disputar. Financiada com dinheiro pública, a reconstrução já alcança R$ 956 milhões.
Corrupção
Investigados esses processos, chega-se à grande crítica popular aos megaeventos: o custo extremo da Copa, e os indícios de corrupção. Segundo o TCU, a Copa do Mundo já custa quase US$ 40 bilhões (R$ 71,6 bilhões). O valor é superior à soma das últimas três Copas, e seria suficiente para organizar sete Copas da Alemanha (2006).
Ainda segundo o TCU, a elevação no valor dos estádios, em relação à estimativa inicial, chega a 47%, ou R$ 2,5 bilhões. O valor serviria para se construir 46,3 mil casas ou apartamentos do programa Minha Casa Minha Vida. A Fonte Nova, em Salvador, cujo custo inicial seria de R$ 591 milhões, agora custará R$ 835 milhões – 41% de aumento. Pela legislação, o aumento não pode superar 20%.
Any Ivo relaciona esse processo à escolha das sedes. “Quem faz a avaliação das sedes para o relatório que vai ser entregue à FIFA de quais serão as capitais é a Associação de Empresas de Infraestrutura. Quem está lá são as grandes empresas de construção civil. No site da Associação, eles têm planilhas que mostram o crescimento do investimento da infraestrutura. De 2010 para 2014, crescem uma enormidade.”
Em Recife, Evanildo Barbosa, coordenador nacional da Fase, elenca alguns dados do site Jogos Limpos sobre a organização da Copa na cidade. “O valor da obra Corredor Caxangá leste-oeste, que era de R$ 74 mil, pulou para R$ 133 mil – 80% de aumento. O BRT leste-oeste pulou de R$ 99 milhões para R$ 182 milhões – 83% de aumento. Sãoinúmeros casos.”
Carlos Santos afirma que os projetos já nascem dentro das empresas interessadas nas obras. O poderpúblico apenas executa. “Eu tenho uma carta assinada pelo prefeito de Salvador, João Henrique (PP), onde ele diz que recebeu como presente, pelo aniversário da cidade, um projeto de mobilidade para a Avenida Paralela”, diz.
Financiamento Público
Como boa parte desses recursos é emprestada, governos municipais e estaduais estão contraindo dívidas enormes. Um exemplo são as obras do Aquário e do Castelão, em Fortaleza. “Pelos cálculos da Defensoria, a Prefeitura e o governo vão se endividar, até 2014, ao menos 30 anos. Aqui houve greve dos professores e da segurança pública. Se diz que não há dinheiro pra eles, mas se vai gastar R$ 9,5 bilhões na Copa”, protesta André Lima Sousa, do Comitê Popular.
Carlos Tautz trabalha, há anos, na Plataforma BNDES, de acompanhamento do banco. Ele explica que os investimentos na Copa são, predominantemente, públicos. “Formalmente, o BNDES seria o terceiro maior investidor direto nas obras. Segundo o TCU, o banco seria responsável por fornecer créditos de quase R$ 5 bilhões (20,8%) dos R$ 23,4 bilhões previstos para a preparação inicial.”
O BNDES estaria atrás de outras fontes de dinheiro público: a Caixa Econômica Federal (28,43%, ouR$ 6,65 bilhões) e a Infraero (22%, ou R$ 5,15 bilhões). “Entretanto, esses valores não dão conta da provável participação do banco no financiamento à expansão dos portos (R$ 741 milhões), aos preparativos dos governos estaduais (R$ 4 bilhões) e municipais (R$ 1,55 bilhões), o apoio ao setor privado (R$ 336 milhões), além de vários outros aportes”, lembra Tautz.
Esse cenário já aconteceu no Panamericano 2007, no Rio. Queimou recursos incalculáveis, sem deixar qualquer legado social. O orçamento do Pan 2007 foi quase dez vezes maior que o inicial – R$ 400 milhões. As obras atrasaram, houve pagamentos sem entrega, e investimentos quase inexistentes em transporte e meio ambiente.
As reformas urbanas foram marcadas pelas remoções e criminalização de ambulantes e de população de rua. Houve despejos até mesmo depois do evento, no Canal do Anil. Gerou muitos “elefantes brancos”, abandonados pouco depois. Só em serviços sem execução comprovada teriam sido gastos R$ 6,8 milhões. Em pagamentos com duplicidade, outros R$ 4,1 milhões.
Na África do Sul, outro cenário desolador. Há, no país, a cidade de Blikkiesdorp, que quer dizer Cidade de Lata. É isso. Lá, em cerca de 1.600 containers, colocaram os removidos da Cidade do Cabo, a 30 quilômetros. “É o lugar para onde levaram as famílias para se construir um dos mais lindos estádios do mundo. Um estádio ecológico. Começa a ser discutida a implosão dele, porque nunca mais foi usado”, afirma o jornalista Juca Kfouri.
Prostituição e tráfico de mulheres também são problemas recorrentes. Na Alemanha, em 2006, falou-se muito no tráfico de mulheres do leste europeu. Houve grandes reformas em bordéis. Há preocupação, no Brasil, com cidades como Fortaleza e Recife, com problemas sérios de prostituição, inclusive infantil.
Segurança
Outro elemento que se repete, nos países sede, é o rígido planejamento da segurança. Já se prevê truculência policial, monitoramento por câmeras, grandes áreas isoladas, e repressão a manifestações. Em Curitiba, se divulgou a informação de quen o governo cogita importar tecnologia de Israel.
Na África do Sul, Chris McMichael, PhD em Segurança pela Rhodes University, pesquisa o tema, em relação à Copa, desde 2009. “A segurança foi projetada para proteger os direitos comerciais da FIFA, e dar bom aspecto ao governo, assegurando a proteção dos turistas. Além disso, aumenta-se a vigilância, com repressão a protestos e restrição a espaço público”, diz. Não são sólidas as conexões comprovadas, no país, de importação de tecnologia israelense.
A repetição dos métodos em países emergentes, como Brasil e África do Sul, tem levado a suspeita de que a FIFA e o COI estariam, recentemente, mais voltados a realizar megaeventos em países com esse perfil. A democracia frágil, a falta de cultura de participação, e a sede por desenvolvimento os transformaria em cenários perfeitos. Não por acaso, as próximas Copas serão na Rússia – que já está revendo sua legislação – e no Qatar.
Nas rodas de bate-papo, uma piada se repete. A obra mais atrasada da Copa do Mundo seria a seleção brasileira. A dois anos do mundial, alcançamos a pior posição da história no ranking da FIFA (7º). Boa parte do time nunca disputou uma Copa. A equipe empolga pouco. Momento? Para alguns, é uma consequência da maneira como o futebol vem sendo gerido.
“A seleção brasileira é um grande negócio. Será que a situação de um jogador no mercado interfere na lista? Será que essa lista é escolhida somente pela comissão técnica? Na seleção, antigamente, entrava o melhor. Hoje, tem jogadores que a gente não entende”, analisa Amarildo Silva, comentarista esportivo em Manaus. Para Olga Firk, “a convocação de um número significativo de atletas durante a preparação significa uma grande estratégia de comercialização de coisas e pessoas.”
O Brasil se torna palco dos dois maiores megaeventos sem uma política esportiva sólida. Segundo críticos, só se incentiva atletas de alto rendimento, e necessitaríamos de políticas esportivas associadas à educação e à saúde. De acordo com pesquisas, para cada US$ 1 investido em esporte, economizase US$ 3 em saúde. Cerca de 80% das escolas brasileiras não têm quadra.
Em 2014, estaremos todos diante da TV, torcendo pela seleção “canarinho”. Sem escrever esse nome, é claro, porque vai pertencer à FIFA. Talvez não possamos nos reunir em um bar próximo ao estádio, ou em frente a um telão. Alguns assistirão aos jogos em suas novas e distantes moradias. Outros não poderão tomar sua Budweiser, porque estarão desempregados. Quase todos celebraremos a seleção, evidentemente. Mas poderia ser totalmente diferente.
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