7 de mar. de 2015

APÓCRIFOS - OS LIVROS RENEGADOS

A palavra apócrifos (do grego a·pó·kry·fos) é usada no seu sentido original como se referindo a coisas ‘cuidadosamente ocultas’. Conforme aplicada a escritos, referia-se originalmente àqueles que não eram lidos em público, portanto, ‘ocultos’ de outros. Mais tarde, contudo, a palavra assumiu o sentido de espúrio ou não-canônico e atualmente é usada mais comumente para referir-se aos escritos adicionais declarados pela Igreja Católica Romana no Concílio de Trento (1546), como fazendo parte do cânon da Bíblia. Os escritores católicos se referem a tais livros como deuterocanônicos, que significa “do segundo (ou posterior) cânon”, para diferenciá-los dos protocanônicos ou “do primeiro cânon”. Esses escritos adicionais são Tobias, Judite, Sabedoria (de Salomão), Eclesiástico (não Eclesiastes), Baruc, 1 e 2 Macabeus, suplementos de Ester, e três adições a Daniel, com nomes diversos, tais como: Cântico dos Três Jovens, Susana e os Anciãos, e A Destruição de Bel e do Dragão. O tempo exato de sua escrita é incerto, mas a evidência indica uma época não anterior ao segundo ou terceiro séculos AEC. Vamos fazer uma análise destes livros que alguns religiosos consideram como sendo inspirados por Deus, enquanto outros consideram como sendo livros espúrios, que não deveriam estar na bíblia.

Tobias – Trata-se do relato de um judeu da tribo de Naftali, que é deportado para Nínive e que fica cego por lhe ter caído esterco de pássaro em ambos os olhos. Ele manda seu filho, Tobias, à Média para cobrar uma dívida. Tobias é guiado por um anjo, que se faz passar por homem, a Ecbátana (Ragés). Em caminho, ele obtém o coração, o fígado e o fel dum peixe. Encontra-se com uma viúva, a qual, embora casada sete vezes, continua virgem, visto que cada marido foi morto na noite das núpcias por Asmodeu, o mau espírito. Incentivado pelo anjo, Tobias casa-se com a virgem enviuvada, e por queimar o coração e o fígado do peixe, expulsa o demônio. Retornando para casa, restabelece a visão do pai por usar o fel do peixe. É provável que a história tenha sido originalmente escrita em aramaico, e calcula-se que ela seja aproximadamente do terceiro século AEC.

Judite - Este é o relato sobre uma bela viúva judia da cidade de “Betúlia”. Nabucodonosor envia seu oficial Holofernes numa campanha para o Oeste, para destruir toda a adoração, exceto a do próprio Nabucodonosor. Os judeus em Betúlia são sitiados, mas Judite finge ser traidora da causa judaica e é admitida ao acampamento de Holofernes, onde ela lhe dá um relatório falso sobre as condições da cidade. Num banquete, no qual Holofernes fica embriagado, ela consegue decapitá-lo com a própria espada dele e então retornar a Betúlia com a cabeça dele. Na manhã seguinte, o acampamento inimigo é lançado em confusão, e os judeus ganham uma vitória completa. Pensa-se que o livro fora escrito na Palestina durante o período grego, perto do fim do segundo século ou do começo do primeiro século AEC. Crê-se que fora originalmente escrito em hebraico.

Adições ao Livro de Ester - Estas constituem seis passagens adicionais. A primeira parte, de 17 versículos, em alguns antigos textos gregos e latinos precede ao primeiro capítulo, apresentando um sonho de Mordecai (Mardoqueu) e a sua exposição duma conspiração contra o rei (na versão Católica Matos Soares encontra-se em Ester 11:2-12:6). Depois de 3:13 (13:1-7 na Matos Soares), a segunda adição apresenta o texto do edito do rei contra os judeus. No fim do capítulo 4 (13:8-14:19 na Matos Soares) relatam-se orações de Mordecai e de Ester como terceira adição. A quarta ocorre depois de 5:2 (15:1-19 na Matos Soares) e conta a audiência de Ester com o rei. A quinta ocorre depois de 8:12 (16:1-24 na Matos Soares) e consiste no edito do rei que permitiu aos judeus defender-se. No fim do livro (10:4-11:1 na Matos Soares), interpreta-se o sonho apresentado na introdução. A colocação destas adições varia em diversas traduções, algumas colocando todas no fim do livro (como Jerônimo fez na sua tradução) e outras intercalando-as no texto.

Sabedoria (de Salomão) - Este é um tratado que exalta os benefícios para os que procuram a sabedoria divina. A sabedoria é personificada como mulher celestial, e a oração de Salomão, pedindo sabedoria, está incluída no texto. A última parte recapitula a história desde Adão até a conquista de Canaã, citando dela exemplos de bênçãos pela sabedoria e de calamidades pela falta dela. Considera-se a tolice da adoração de imagens. Embora Salomão não seja mencionado especificamente por nome, em certos textos o livro o apresenta como seu autor. (Sabedoria 9:7, 8, 12)

Eclesiástico - Este livro, também chamado Sabedoria de Jesus, Filho de Sirac, tem a distinção de ser o mais longo dos livros apócrifos e o único cujo autor é conhecido, Jesus ben-Sirac de Jerusalém. O escritor explica a natureza da sabedoria e sua aplicação para uma vida bem-sucedida. A observância da Lei é fortemente enfatizada. Dá-se conselho sobre muitos campos de conduta social e da vida diária, inclusive comentários sobre modos à mesa, sonhos e viagens. A parte concludente contém um retrospecto sobre importantes personagens de Israel, terminando com o sumo sacerdote Simão II. O livro foi originalmente escrito em hebraico, no começo do segundo século AEC. Citações dele são encontrados no Talmude judaico.

Baruc (Incluindo a Epístola de Jeremias) - Faz-se parecer como se os primeiros cinco capítulos tivessem sido escritos pelo amigo e escriba de Jeremias, Baruque (Baruc); o sexto capítulo é apresentado como carta escrita pelo próprio Jeremias. O livro relata as expressões de arrependimento e as orações por alívio por parte dos judeus exilados em Babilônia, exortações para seguir a sabedoria, incentivo para esperar na promessa de libertação e a denúncia da idolatria babilônica.

Cântico dos Três Jovens - Esta adição a Daniel segue a Daniel 3:23. Consiste em 67 versículos que apresentam uma oração supostamente proferida por Azarias dentro da fornalha ardente, seguida por um relato sobre um anjo que apagou as chamas, e finalmente um cântico entoado pelos três hebreus dentro da fornalha. O cântico é bastante similar ao Salmo 148.

Susana e os Anciãos - Este relata um incidente na vida da bela esposa de Joaquim, um judeu rico em Babilônia. Enquanto Susana se banhava, chegaram-se a ela dois anciãos judeus, que instaram com ela que cometesse adultério com eles, e, quando ela recusou, forjaram uma falsa acusação contra ela. No julgamento, ela foi condenada à morte, mas o jovem Daniel habilmente expôs os dois anciãos, e Susana foi exonerada da acusação. Não há certeza sobre a língua original. Pensa-se que tenha sido escrito durante o primeiro século AEC. Na Septuaginta grega o trecho foi colocado antes do livro canônico de Daniel, e na Vulgata latina foi colocado depois dele. Algumas versões o incluem como capítulo 13 de Daniel.

A Destruição de Bel e do Dragão - Esta é uma terceira adição a Daniel, sendo que algumas versões a colocam como capítulo 14. No relato, o Rei Ciro exige que Daniel adore um ídolo do Deus Bel. Por aspergir cinzas no pavimento do templo e assim descobrir pegadas, Daniel prova que o alimento supostamente consumido pelo ídolo na realidade é consumido pelos sacerdotes pagãos e suas famílias. Os sacerdotes são mortos e Daniel destroça o ídolo. O rei requer de Daniel adorar um dragão vivo. Daniel destrói o dragão, mas é lançado na cova dos leões pela população enfurecida. Durante os sete dias do seu confinamento, um anjo pega Habacuque pelos cabelos e leva tanto a ele como uma tigela de caldo da Judéia a Babilônia, a fim de prover Daniel de alimento. Habacuque é então devolvido à Judéia, Daniel é solto da cova, e seus oponentes são lançados nela e devorados.

Primeiro Macabeus -Um relato histórico da luta de independência dos judeus durante o segundo século AEC, desde o começo do reinado de Antíoco Epifânio (175 AEC) até a morte de Simão Macabeu (c. 134 AEC). Trata especialmente das façanhas do sacerdote Matatias e de seus filhos, Judas, Jônatas e Simão, nas suas lutas com os sírios.

Segundo Macabeus - Embora colocado após Primeiro Macabeus, este relato refere-se a parte do mesmo período (de c. 180 AEC a 160 AEC), mas não foi escrito pelo autor de Primeiro Macabeus. O escritor apresenta o livro como resumo das obras anteriores de certo Jasão de Cirene. Descreve as perseguições sofridas pelos judeus sob Antíoco Epifânio, o saque do templo e sua subsequente rededicação. O relato apresenta Jeremias, por ocasião da destruição de Jerusalém, como levando o tabernáculo e a arca do pacto a uma caverna no monte do qual Moisés viu a terra de Canaã. (2 Macabeus 2:1-16)

Apócrifos do Novo Testamento

Jesus Cristo com certeza é uma das figuras mais impressionantes de toda a bíblia. Tirando todo o lado místico que leva bilhões de pessoas a exercerem fé e terem esperança, a moldarem suas vidas pelos ensinos e conceitos de Jesus, deixando tudo isso de lado e nos concentrando no Jesus histórico, temos na realidade apenas quatro pequenos relatos de sua vida nas páginas da bíblia. Segundo muitos religiosos, três são similares em ponto de vista, porque adotam um enfoque parecido ao narrar a vida de Jesus na terra, estes são Mateus, Marcos e Lucas. Se você ler estes três primeiros evangelhos notará que não raro abrangem os mesmos incidentes e seus relatos em sua maioria são paralelos. Já o evangelho de João traz uma estrutura diferente e a maioria de seus relatos não se encontram nos demais evangelhos.

Entretanto, não se pode deixar de mencionar que diversos outros evangelhos narrando a vida de Jesus foram escritos durante os primeiros três séculos de existência do cristianismo, sabemos disso por meio do evangelho de Lucas que no capítulo 1, versículo 1 diz: “Considerando que muitos empreenderam compilar uma declaração dos fatos que entre nós recebem pleno crédito”. O autor indica que muitos empreenderam compilar os relatos da vida de Jesus e que para escrever seu próprio relato, ele consultou “muitos” escritos precedentes. Se formos levar em conta as fontes cristãs posteriores dos séculos II e III temos inúmeros outros evangelhos produzidos por diversas comunidades cristãs existentes na época (como os Ebionitas, os Docetas e os Gnósticos), cada qual com sua própria interpretação teológica sobre Jesus e seus próprios escritos, muitos destes levando nomes de discípulos famosos de Jesus como o Evangelho de Filipe (um discípulo de Jesus), de Maria Madalena, de Tiago (irmão de Jesus), de Judas, de Pedro, de Tomé, entre outros. Além disso, existem manuscritos antigos de outras cartas que não se encontram na bíblia como Terceira Coríntios e a Epístola de Barnabé, sem falar nos Atos de Paulo e de Pedro. Vários achados arqueológicos têm descoberto inúmeros escritos da época. O exemplo a seguir demonstra bem isso

No inverno de 1945 no Egito Superior perto da cidade de Nag Hammadi um camponês árabe escavava em busca de solo fértil. Em vez disso, porém, fez surpreendente descoberta. Sua picareta bateu em algo duro, um jarro de argila. Dentro dele, encontrou 13 volumes encadernados em couro, que remontavam ao segundo século EC. Mas não foi senão em 1955 que esta descoberta arqueológica ganhou as manchetes. E ainda cria comoção entre leitores da Bíblia, porque alguns afirmam que os volumes descobertos contêm os dizeres secretos de Jesus. Na realidade, 48 diferentes documentos religiosos foram encontrados naquela colina egípcia. Num desses volumes encontra-se um texto chamado de Evangelho segundo Tomé, que começa sua narrativa assim: “Estas são as palavras secretas que o Vivente Jesus proferiu, e Dídimo Judas Tomé escreveu”. Portanto, estes quatro evangelhos que se encontram na bíblia são apenas uma pequena amostra dos vários relatos que foram feitos durante os primeiros séculos do cristianismo (Elaine Pagels, Beyond Belief: The Secret Gospel of Thomas (2003), Vintage Books. ISBN 0-375-50156-8).

Mas então porque apenas quatro relatos da vida de Jesus estão na bíblia? A maioria dos evangelhos escritos no 1º e 2º séculos desapareceu. Naquela época um “livro” era um amontoado de papiros avulsos enrolados em forma de pergaminho, portanto como você pode imaginar, perder ou extraviar estes pergaminhos era algo muito fácil de acontecer. Porém, alguns evangelhos foram copiados e recopiados à mão por membros da igreja. Tais livros tinham de ser copiados um por vez, devagar e em seus mínimos detalhes, por isso eram inevitáveis erros, tanto acidentais (um escorregão de pena, uma linha pulada) como não acidentais (o copista altera uma palavra por achá-la mais bonita ou para apoiar determinada crença pessoal).

Celso, filósofo romano do 2º século criticou asperamente os copistas cristãos pelos erros em suas cópias: “Alguns fiéis, como pessoas embriagadas que se agridem a si mesmas, manipularam o texto original dos evangelhos três ou quatro vezes, ou até mais, e o alteraram para poderem opor negações às criticas” (Orígenes, Contra Celso. Editora Paulus 2004, pág. 152 - Contra Celso, 2.27).

Irineu, cristão do 2º século que morava na Gália e era líder da congregação de Lião, escreveu contra Marcião, alegando que ele tinha feito o seguinte:“Mutilou as epístolas de Paulo, eliminando tudo o que o Apóstolo disse acerca do Deus que criou o mundo, no sentido de que Ele é o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, e ainda as passagens dos escritos proféticos citados pelo Apóstolo com vistas a nos ensinar aquilo que eles anunciaram antes da vinda do Senhor” (Contra as heresias, 1.27.2).

Orígenes, um padre da igreja do 3º século, uma vez registrou uma queixa acerca das cópias dos evangelhos de que dispunha: “as diferenças entre os manuscritos se tornaram gritantes, ou pela negligencia de algum copista ou pela audácia perversa de outros; ou eles descuidam de verificar o que transcreveram ou no processo de verificação, acrescentam ou apagam textos como mais lhes agrade” (Commentary on Matthew 15:14 as quoted in Bruce M. Metzger, "Explicit References in the Works of Origen to Variant Readings in New Testament manuscripts," in Biblical and Patristic Studies in Memory of Robert Pierce Casey, ed. J Neville Birdsall and Robert W. Thomson. Freiburg: Herder, 1968, pág. 78, 79).

Dionísio, bispo de Corinto lamentou o fato de que falsos crentes modificaram escritos de sua autoria, como tinham feito com textos sacros: “Quando meus companheiros cristãos me convidaram a escrever cartas eu o fiz. Mas estes apóstolos do demônio as encheram de vícios, eliminando algumas coisas e acrescentando outras. Não é, pois, de admirar que alguns dentre eles tenham ousado adulterar a palavra do próprio Senhor” (Church History - Dionysius, Bishop of Corinth, and the Epistles which he wrote, vol. IV, Chapter 23, citado por Eusébio).

Acusações deste tipo são muito freqüentes entre os primeiros escritores cristãos e não havia como os autores impedirem que seus escritos fossem alterados. Isso explica porque muitos autores, por vezes, lançavam maldições sobre copistas que modificassem seus textos. Um exemplo clássico disso está no livro bíblico de Apocalipse 22:18-19: “Estou dando testemunho a todo aquele que ouvir as palavras da profecia deste rolo: Se alguém fizer um acréscimo a essas coisas, Deus lhe acrescentará as pragas que estão escritas neste rolo; e se alguém tirar qualquer coisa das palavras do rolo desta profecia, Deus lhe tirará o seu quinhão das árvores da vida e da cidade santa, coisas das quais se escreve neste rolo”. O receio de ter suas narrativas “editadas” era comum entre os autores do Novo Testamento. Essa ameaça descrita acima reflete bem o clima dos primeiros séculos do cristianismo, uma verdadeira baderna teológica, com um monte de seitas e comunidades defendendo ideias diferentes sobre Jesus.

A seita dos Docetas (da palavra grega dokeo, que significa parecer), por exemplo, acreditava que Jesus não teve um corpo físico, apenas parecia um ser humano, mas na verdade era um ser divino. Ele seria um espírito e sua crucificação e morte não passou de ilusão de ótica. Viam uma distinção entre a lei dada por Moisés que não levaria a salvação e o evangelho de Jesus que levaria. Consideravam que a lei judaica e o evangelho de Jesus não tinham nada em comum, sendo a lei para os judeus e o evangelho para os cristãos. Observavam uma grande diferença entre o Deus do Antigo Testamento, julgador, encolerizado e vingativo, do Deus de Jesus que era amoroso, misericordioso e trazia salvação, para eles eram Deuses diferentes.

Já os Ebionitas (Adocionistas) eram judeus convertidos ao cristianismo que insistiam em preservar as leis estipuladas por Deus a Moisés e que Jesus seria o Messias enviado pelo Deus judeu para salvar o mundo. Entendiam que a fé em Jesus não significava uma ruptura com o judaísmo, mas a interpretação correta da religião revelada por Deus a Moisés no Monte Sinai. Acreditavam que Jesus não nasceu filho de Deus, não era divino, mas um ser humano de carne e osso que foi adotado quando adulto pelo Senhor, provavelmente por ocasião do batismo. Para eles Jesus era o Messias judeu enviado pelo Deus judeu ao povo judeu para cumprir a lei judaica, assim, quem quisesse seguir Jesus tinha que ser judeu ou se fosse gentio tinha que ser circuncidado e seguir todos os preceitos da lei.

Os Gnósticos (Separacionistas) do grego “gnosis” ou conhecimento, sustentavam que o conhecimento e não a fé era o que salvava. A pessoa precisava saber como este mundo surgiu, quem você realmente é, de onde veio, quem o colocou aqui e como podemos voltar. Jesus era um ser divino que desceu do plano celestial para transmitir o conhecimento secreto da salvação aos espíritos presos aqui na terra.  Acreditavam numa fusão dos dois conceitos anteriores, Jesus seria dois seres, um completamente humano (o homem Jesus), e outro completamente divino (o Cristo divino). Jesus seria um humano que tinha sido temporariamente habitado por um ser divino entre o momento de seu batismo até o instante de sua morte. Por isso teria dito antes de morrer “Deus meu, Deus meu, por que me abandonastes?”.

Todas estas comunidades cristãs tinham seus escritos apoiando seus conceitos e quando recebiam escritos que apoiavam outras idéias, eles ao copiá-los, sutilmente procuravam modificar alguma palavra ou expressão que pudesse apoiar o conceito de outra comunidade. A primeira tentativa de organizar esse caos das escrituras ocorreu mais de 100 anos após a morte de Jesus. O responsável foi um rico comerciante naval chamado Marcião. Ele nasceu na Turquia, foi para Roma, converteu-se ao cristianismo, virou um teólogo influente e resolveu montar sua própria seleção de textos sagrados. A bíblia de Marcião era bem diferente da que conhecemos hoje. Isso porque ele simpatizava com a seita dos Docetas. A bíblia editada por Marcião continha apenas uma forma do evangelho de Lucas e 10 cartas de Paulo (Bart D. Ehrman, Misquoting Jesus: The Story Behind Who Changed the Bible and Why. Harper San Francisco, 2005. ISBN 0-06-073817-0).

A decisão sobre quais livros deveria fazer parte do cânone não foi tomada da noite para o dia. Quatrocentos anos após a morte de Cristo, no fim do século IV, não havia ninguém que afirmasse que o Novo Testamento consistia dos 27 livros que temos hoje. Na época de Serapião (um monge egípcio de grande erudição e muito inteligente que por certo período dirigiu a famosa Escola Catequética de Alexandria, considerado um santo e falecido por volta de 370 d.C.) surgiu um autor (anônimo por sinal) que tentou definir uma relação de livros que acreditava compor as Escrituras cristãs. Essa lista fragmentada é chamada de Cânone Muratório, em homenagem a L. A. Muratori, estudioso italiano do século XVIII que a descobriu na cidade de Milão. Neste catálogo a primeira parte da lista desapareceu. Após algumas palavras do fim de uma frase descrevendo um dos evangelhos, o autor continua falando de Lucas como "o terceiro livro do evangelho". Ele a seguir identifica João como "o quarto" e prossegue. Portanto, se supõem que a lista começa com Mateus e Marcos, mas não há como afirmar isso categoricamente. O autor desconhecido identifica como canônicos 22 de nossos 27 livros, porém, Hebreus, Tiago, 1 e 2 Pedro e 3 João não estão lá. Além disso, neste catálogo está incluído Sabedoria de Salomão e o Apocalipse de Pedro como livros canônicos.

O Cânone Muratório indica que pelo menos um autor da época estava interessado em saber quais livros poderiam ser aceitos como canônicos e que em certos círculos já eram aceitos alguns livros que acabariam sendo considerados canônicos no futuro, apesar de que dois dos livros catalogados como canônicos foram depois excluídos da bíblia. Mas a questão continuou sendo discutida durante séculos. Sabemos disso em parte pelos manuscritos que temos do Novo Testamento. Assim que chegamos ao século VI e VII, os manuscritos passam a ter apenas os livros que hoje são considerados canônicos do Novo Testamento, mas isso não acontece em períodos anteriores. O Código Alexandrino, por exemplo, um famoso manuscrito do século V, inclui como parte do Novo Testamento os livros de 1 e 2 Clemente, supostamente escritos pelo homem que Pedro escolheu como bispo de Roma. E o Código Sinaítico, do século IV, inclui a Epístola de Barnabé e o Pastor de Hermas. O manuscrito chamado P.72 inclui um evangelho supostamente escrito por Tiago, o irmão de Jesus (A natividade de Maria) mais conhecido como protoevangelho de Tiago, 3ª Coríntios e uma homilia do pai da Igreja Melito sobre a Páscoa. 

Vários cristãos de diversas comunidades com vários conceitos diferentes escolheram suas próprias coleções de livros preferidos e passaram a encará-los como os verdadeiros livros inspirados por Deus. Até então, o cristianismo sobrevivia como a fé de uma minoria oprimida dentro do Império Romano. Porém, em 28 de outubro de 312 E.C., o seu destino começou a mudar graças a um homem chamado Constantino. Em franca luta pelo poder, Constantino alegou ter tido uma visão de uma grande luz em forma de cruz e encarou isto como um sinal do Deus cristão. Constantino mandou fazer um estandarte para a batalha sobre a ponte do rio Mílvio na forma de cruz e pintou a mesma forma nos escudos dos soldados. Coincidência ou não, ele venceu esta batalha e algum tempo depois se tornou Imperador Romano. Daí em diante, a perseguição aos cristãos terminou e mais do que isto, o cristianismo passou a se tornar à religião da moda. 

Ele pretendia usar a força crescente da nova religião para fortalecer seu império. Depois de 12 anos consolidando seu poder, Constantino declarou-se cristão, fez pomposas doações a sua nova religião, construiu a basílica de Santa Sofia em Constantinopla e a basílica de São Pedro em Roma. Além disso, sentiu-se no direito de impor a unidade a seus súditos cristãos, colocando ordem na casa de Deus, nessa época ainda dividida sobre questões teológicas. Em 325 E.C., organizou um concilio em Nicéia, onde impôs um credo comum e uma lista de livros chamada de oficial, que segundo o concilio, “realmente” haviam sido inspirados por Deus. Com o apoio da maioria dos bispos presentes, Constantino unificou a igreja e o império sob seu controle. Eles escolheram os evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João para representar a biografia oficial de Jesus, enquanto os demais evangelhos dos docetas, dos ebionitas, dos gnósticos e de outras seitas foram excluídos e seus autores declarados hereges. A maioria destes textos se perdeu, afinal de contas, os escribas da igreja não estavam interessados em recopiá-los para a posteridade e sem o apoio do todo poderoso Império Romano foram fadados ao esquecimento.

Portanto, temos hoje apenas 4 evangelhos que contam a vida de Jesus por causa de um imperador que impôs um conceito teológico, descartando os demais, numa tentativa de unificar os cristãos e seu império. Tudo não passou de uma questão de ideias que foram se sobrepujando as outras devido as circunstancias de cada momento histórico. É uma pena que o tempo e as circunstancias tenham desaparecido com muitos textos e relatos sobre a vida de Jesus, por outro lado e emocionante ver a arqueologia desenterrar alguns destes evangelhos tidos como perdidos, pois só poderemos chegar mais perto da verdadeira história de Jesus, comparando todos estes relatos, para termos um quadro mais amplo deste personagem tão intrigante, que apesar de estimular a fé de bilhões de pessoas, pouco se sabe de sua verdadeira história.

 Fonte - Este texto foi extraído do livro "A Bíblia Sob Escrutínio", publicado pela Editora Clube de Autores. 

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