20 de out. de 2015

Platão e o Mito da Caverna


Alguns especialistas apontam o famoso “mito da caverna”, como sendo a obra mais iluminada de Platão. Trata-se do Livro VII da “República”, obra que poderia, apropriadamente, intitular-se “Da Justiça”. Ou ainda “A cidade perfeita”.
Nesse imprescindível capítulo, dois modos bem distintos [mas tão ligados e intercambiáveis quanto o céu e a terra] de percepção de mundo se apresentam a todos nós: o inteligível e o visível. Esse último, o visível, refém e escravo do que pode ser apreendido e conhecido pelos sentidos, é limitado. Já o inteligível, oriundo de uma percepção mental, psíquica (psichê é a alma), “nos alça a senhores das mais altas instâncias”, pois nele encontramos a verdadeira essência da qual a realidade que nos circunda, também repleta de muitos bens, é apenas cópia.
O amigo leitor poderia intervir que a realidade que nos circunda também está repleta de muitos males, mas isso seguramente não é cópia de luz, mas de sua ausência: trevas.
Nas palavras proferidas pelo sapientíssimo Sócrates, em diálogo com seu amigo Glauco, Platão irá descrever o modus vivendi dos homens que desde a mais tenra infância, confinados no breu do fundo de uma caverna, atém-se a viver uma vida estritamente limitada ao mundano, uma vida ordinária, comum (como a vida de todos nós) e o que os diferencia daqueles que, imbuídos primeiramente de coragem (que segundo Aristóteles é a principal das virtudes, pois garante as demais) e de uma inquietante curiosidade, ousam desvencilharem-se dos grilhões e numa ascese (ascensão mental possibilitada pelo uso da razão), libertos das limitações da ignorância, contemplam a luz do Saber.
Tudo graças ao lógos dialético, pois como diz Sócrates: “não posso pensar em nenhum outro estudo que faça a alma olhar para cima, senão o que diz respeito ao Ser e ao invisível”. O lógos dialético é próprio da filosofia, pois tem como télos (propósito, objetivo, finalidade) a contemplação da Verdade. É um Pensar que não é sobre o “isso” e o “aquilo” do mundo porque tributa honra a Justiça, à Beleza e à Bondade.
Além de descrever, minuciosamente, como todos nós, os habitantes da caverna, apreendemos a realidade que nos cerca, única e exclusivamente através dos sentidos (visão, audição, olfato, paladar e tato) e de como esse modo de apreender é limitado, Platão também discorre sobre a resistência que encontramos em nós mesmos, para ampliar o alcance de nossa visão. Somente através do exercício da dialética é que se abre essa possibilidade, que é a capacidade de ter uma visão de conjunto, do todo. Pacientemente, tomando-nos com docilidade, Sócrates e seu encantatório “suponha que...” do mito da caverna, nos revela que essa mudança de perspectiva proporcionada pela dialética não é súbita, tampouco indolor.
Primeiramente, devido à existência de uma fogueira atrás de si [mas que não a veem], os prisioneiros confinados às trevas da caverna, estando com suas cabeças voltadas para a parede, só conseguem enxergar as sombras das imagens que são projetadas nelas. Imagens essas que só se tornam visíveis, como já dissemos, devido à luz do fogo que ignoram. Eis que assim, vivemos como crianças a assistir uma apresentação de sombras de fantoches e, por cômoda ignorância, tomamos essas sombras de objetos como a mais pura realidade. Nominamo-las, classificamo-las, hierarquizamo-las etc.
Posteriormente, alguns desses homens poderão volver a cabeça para trás e, surpresos, enxergar, tanto a fogueira que iluminava a caverna, quanto os objetos que eram iluminados, mas dos quais, que até então, só se viam sombras.
Mas isso ainda não é toda a realidade. Ao menos não é a única. Somente dando mais um passo adiante, que é o de se dirigir pelo caminho íngreme que sobe até o orifício localizado na entrada da caverna e de se deparar com a luz do próprio sol (fonte primeva de toda vida e de tudo o que aqui na terra não passa de cópia), é que esses homens, antes escravos dos sentidos, como os demais parceiros lá embaixo, espantados, inteligirão que é ele mesmo, o astro-rei, o único e verdadeiro “responsável por tudo aquilo de que eles viam um arremedo” [inclusive o outrora “tão real” fogo da fogueira lá embaixo].
Eureca! Contempla-se a essência (ousía) do Sol, o que equivale a inteligir a Ideia de Bem.
Estupefato com a descoberta de que até o fogo de sua fogueira que parecia tão real não passa de cópia do calor do sol, esse homem, que nutre amor à sabedoria, experimenta uma irreversível conversão.
É natural que nele ocorra uma transformação e que, por compaixão, pois também nutre philía ao antropos (amor ao homem), lamente profundamente que seus companheiros não comunguem desse maravilhoso descortinamento. Não será sem angústia que testemunhará as pessoas, acometidas pela cegueira da ignorância, se digladiarem em busca de glórias, honras, elogios e prêmios que os toscos concedem àqueles igualmente miseráveis por distinguirem com mais agudeza os detalhes daquilo que pensam ser tudo o que há.
Quanto ao homem assim modificado, citando o magnânimo aedo (poeta) Homero quando põe na boca de Aquiles já morto, em diálogo com a sombra do ilustre visitante Ulisses no reino do Hades (reino dos mortos), que preferiria mil vezes “servir junto de um homem pobre, como servo da gleba”, Platão alude que o filósofo escolheria “antes sofrer tudo do que regressar àquelas ilusões e viver daquele modo”. A verdade é que para àquele que viu a luz com os olhos da alma, que agora sabe que há mais do que nosso limitado corpo conhece, não há nada mais insuportável que voltar a conviver como se tudo o que existisse de mais valoroso fosse essa mutável, decrépita e perecível realidade mundana. E, no exemplo citado do já finado Aquiles, pior ainda: não poder mais agir, pois a vida se exauriu. É de inquietante desassossego esse “despertar da consciência crítica”.
Tendo se desembaraçado da escuridão da caverna, submergido do lamaçal da ignorância e contemplado, não somente os bens mundanos, mas o bem em si mesmo, ao regressar para a companhia de seus camaradas, para àquele mundo que todos consideram o único possível e denominam realidade, esse indivíduo certamente seria, no mínimo, alvo de chacota (recomendo a leitura do poema “O Albatroz” de Charles Baudelaire, disponível em meu Blog). E, se ousasse desamarrar seus amigos e conduzi-los até acima para compartilhar daquilo que se revelou, com certeza correria risco de morte, como realmente sucedeu com o próprio Sócrates e o Nazareno.
E Sócrates prossegue esclarecendo ao ouvinte Glauco que “Pois, segundo entendo, no limite do cognoscível [das coisas que aparecem] é que se avista, a custo, a ideia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é para todos a causa de quanto há de justo e belo; que, no mundo visível, foi ela que criou a luz, da qual é senhora; e que, no mundo inteligível, é ela a senhora da verdade e do inteligível, e que é preciso vê-la para se ser sensato na vida particular e pública”.
Platão afirma que é natural que os que ascenderam àquele ponto não queiram mais tratar dos assuntos dos homens, mas sim empreenderem esforço para manter sempre sua alma nas alturas, e que no regresso à “realidade” ficam desajeitados: “Ora, pois! Entendes que será caso para admirar, se quem descer destas coisas divinas às humanas fizer gestos disparatados e parecer muito ridículo, porque está ofuscado e ainda não se habituou suficientemente às trevas ambientes, e foi forçado a contender, em tribunais ou noutros lugares, acerca das sombras do justo ou das imagens das sombras, e a disputar sobre o assunto, sobre o que supõe ser a própria justiça quem jamais a viu?”
Vislumbramos duas instâncias de Justiça, a divina (Thêmis) e a mundana, dos homens (Diké) e sobre o embaraço que o filósofo é obrigado a suportar ao tratar com os homens que ignoram Thêmis, prossegue: “Mas quem fosse inteligente lembrar-se-ia de que as perturbações visuais são duplas, e por sua dupla causa”. Uma se dá com a “passagem da luz à sombra e [a outra] da sombra à luz. Se compreendesse que o mesmo se passa com a alma, quando visse alguma [alma] perturbada e incapaz de ver, não riria sem razão, mas reparava se ela não estaria antes ofuscada por falta de hábito [nas mundanidades], por vir de uma vida mais luminosa, ou se [ao contrário], por vir [a alma] de uma maior ignorância a uma luz mais brilhante, não estaria deslumbrada por reflexos demasiadamente refulgentes; à primeira [que acaba de regressar da contemplação do Bem], deveria felicitar pelas suas condições e pelo seu gênero de vida; da segunda [que por sua recente descoberta está desajeitada no mundo], ter compaixão e, se quisesse troçar dela, seria menos ridículo essa zombaria do que se se aplicasse àquela [outra alma] que descia do mundo luminoso” e que ainda não se adaptou à pequenezas.
É de valor inestimável e atemporal prosseguirmos na análise desse precioso legado, pois Platão examinará ainda a importância da educação no processo de detecção e formação do filósofo, quais devem ser seus passos e em quais idades e responde com muita clareza, de forma irrefutável, porque é que o filósofo, depois de ter visto o bem em si, de usá-lo como paradigma para ordenar os particulares e a si mesmo, a cidade e cada um por sua vez, para o resto da vida, repleto de amor, vencerá os embates da política e assumirá a chefia do governo. Não somente porque isso é belo, mas porque para que uma cidade seja justa, é necessário.

http://www.esdc.com.br/CSF/artigo_2009_06_Platao_e_o_Mito_da_Caverna.htm


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