Talvez você ainda não tenha se tocado disso, mas há centenas de escravos trabalhando para você. Sim, isso mesmo que você leu: centenas de escravos. Todos os dias, de domingo a domingo.
Repare como é o seu dia. Você acorda esticado num lençol de tecido chinês, assiste a seu seriado favorito num televisor com partes eletrônicas de Taiwan e da Coreia do Sul, dirige um carro provavelmente alemão, japonês ou italiano, conversa num celular com plástico tailandês e borracha malaia, troca emails através de um servidor americano e agora provavelmente está lendo esse texto por uma tela de led fabricada em Cingapura. E isso é apenas a ponta do iceberg. Em poucos minutos, você consome produtos dos mais remotos cantos do mundo, que movimentam um batalhão de seres humanos, atravessando oceanos, rompendo barreiras, com um único propósito: servi-lo. Há pessoas extraindo petróleo por você, cultivando alimentos, desenvolvendo medicações, softwares, obras culturais. Talvez você sequer tenha percebido tudo isso, mas consome frações do trabalho de centenas de pessoas, das mais diversas nacionalidades, todos os dias.
Como aponta o biólogo britânico Matt Ridley, em média, um ser humano consome energia à razão de cerca de 2.500 watts, ou, dito de outra forma, usa 600 calorias por segundo – a maior parte disso através de carvão, petróleo e gás. Uma vez que uma pessoa em boa forma, numa bicicleta ergométrica, pode gerar cerca de 50 watts, isso significa dizer que seriam necessários 150 escravos, trabalhando em turnos de oito horas cada, para sustentar o seu estilo de vida. Ou, dito de outra forma: aquecê-lo no frio, refrigerá-lo no calor, torná-lo mais bem alimentado, mais seguro, mais saudável, mais confortável, mais conectado ao mundo. Faça a conta. Para cada família com quatro pessoas, mais de 600 escravos à disposição. Não é pouca coisa. Já imaginou esse tanto de gente dividindo a sala com você?
Mas nem sempre foi assim. A nossa dependência de combustíveis fósseis e de um sistema econômico robusto de mercado é algo relativamente recente na história da humanidade, um sopro nos cinquenta mil anos de comportamento moderno do Homo sapiens. É fruto do tal tempo moderno, tão questionado, atacado e maldito por populistas, críticos da globalização, ludistas de botequim e apologistas do atraso. Há míseros dois séculos, o mundo era radicalmente diferente. E aqui, tenho 7 razões porque você iria odiar viver nele.
1) Sua vida seria mais curta, dolorosa e desconfortável.
Esqueça a imagem pomposa, de aristocratas, príncipes e rainhas dançando em longos trajes de gala. Em 1820, 75% da humanidade vivia com menos de um dólar por dia. O mundo era uma grande África subsaariana. Imagine você inserido nesse universo. Provavelmente viveria no campo (já em 1900, apenas 15% da população mundial vivia em cidades). Sua expectativa de vida diminuiria pela metade automaticamente. Você estaria entregue aos piores pesadelos que atualmente desconhece, convivendo de perto com a chance de morrer de fome, tuberculose, malária, poliomelite, gripe, difteria.
Sua vida seria radicalmente diferente. Nada de celular, televisão, internet, ar condicionado, geladeira. Nada de aspirador de pó, filtro de café, alimentos congelados, fita adesiva, protetor solar, caneta esferográfica, fralda descartável. Você não saberia a cor do seu próprio planeta visto do espaço, que a Via Láctea é apenas uma de muitas galáxias e como é uma música gravada.
Além disso, esqueça sua relação atual com o tempo. A prosperidade não se traduz apenas em grana no bolso. Tempo literalmente é dinheiro. No século dezenove, a simples satisfação das necessidades básicas preencheria a maior parte das horas de seu dia. Atualmente, uma camponesa num país pobre africano gasta 35% de seu tempo cultivando alimentos, 33% cozinhando e limpando, 17% buscando água potável e 5% coletando lenha. Dessa forma, restam apenas 10% de seu dia para outras atividades. No século dezenove, esse era um fenômeno global, generalizado, praticamente inescapável.
Voltar dois séculos, em resumo, significaria ter uma vida curta, sofrendo de todas as dores possíveis sem um tratamento médico adequado, num ambiente absolutamente desconfortável e com pouco tempo disponível para aproveitar a vida.
2) Se somássemos toda fortuna dos homens mais ricos do século 19, não daria a riqueza que você tem à disposição hoje.
Sim, você provavelmente é muito mais rico que Nathan Rothschild, um dos homens mais ricos de todos os tempos, e não sabe disso. E não apenas ele. Você é mais rico que Andrew Carnegie, John Rockefeller, J.P. Morgan, Jay Gould. Todos esses caras dariam alguns milhões de dólares para terem um televisor, um celular, um notebook, ou ainda, em troca de alguns antibióticos, uns preservativos e ao acesso de informações que você tem diariamente através da internet. Como escrevi recentemente, dos norte americanos oficialmente considerados “pobres”, 99% têm eletricidade, água corrente, descarga e uma geladeira; 95% têm uma televisão; 92% têm forno-microondas, 88% têm um telefone; 71% têm ao menos um carro, 70% têm ar condicionado e mais de 60% têm TV a cabo. Os homens mais ricos do século dezenove não tinham nada disso.
3) Aos homens: sobreviver.
• 20% num teto sobre sua cabeça
• 18% em carros, aviões, combustível e outras formas de transporte
• 16% em coisas para casa: cadeiras, refrigeradores, telefones, eletricidade, água
• 14% em alimentos, bebidas, restaurantes, etc.
• 11% em seguro de vida e pensões (poupar para gastos futuros)
• 6% com seguro-saúde
• 5% em cinema, música e todos os entretenimentos
• 4% em roupas de todos os tipos
• 2% em educação
• 1% em sabão, batom, cortes de cabelo e coisas semelhantes
• 0,3% em leitura
• 18% em carros, aviões, combustível e outras formas de transporte
• 16% em coisas para casa: cadeiras, refrigeradores, telefones, eletricidade, água
• 14% em alimentos, bebidas, restaurantes, etc.
• 11% em seguro de vida e pensões (poupar para gastos futuros)
• 6% com seguro-saúde
• 5% em cinema, música e todos os entretenimentos
• 4% em roupas de todos os tipos
• 2% em educação
• 1% em sabão, batom, cortes de cabelo e coisas semelhantes
• 0,3% em leitura
Um agricultor inglês, no início do século dezenove, teria gasto seu salário da seguinte forma:
• 75% em alimentos
• 10% em roupas e forragem
• 6% em moradia
• 5% em aquecimento
• 4% em luz e sabão
• 10% em roupas e forragem
• 6% em moradia
• 5% em aquecimento
• 4% em luz e sabão
Sobreviver era a palavra-chave para um cidadão médio nascido no século dezenove. Nada mais fazia sentido. E poucas ações traduziam melhor esse sentimento do que o hábito de comer pão.
Para muita gente, o pão era uma espécie de salvador. Segundo Christian Petersen, historiador do pão, 80% dos gastos com alimentação de uma família típica britânica iam para o pão no início do século dezenove. Esqueça a comida japonesa, a pizza de final de semana, o brigadeiro. Mesmo as pessoas de classe média gastavam algo próximo dos 2/3 de sua renda com alimentação, dos quais uma parcela considerável ia para o pão. Para uma família pobre, a alimentação diária consistia de batatas, um punhado de chá e açúcar, uma ou duas fatias de queijo e, raramente, um pouco de carne. O resto era preenchido pelos pães.
4) Às mulheres: não-ser.
Até 1857, uma mulher divorciada tinha de abrir mão de todos os seus bens, e em geral perdia também a guarda dos filhos. Antes da Married Property Act, de 1882, quando uma mulher se casava, sua riqueza era passada ao companheiro – e se trabalhasse depois de casada, não era incomum que seus ganhos continuassem nas mãos do marido. Perante a lei, uma mulher não tinha direito algum – não poderia usufruir de plena liberdade de expressão, possuir propriedade, assinar documentos legais ou obter uma educação contra a vontade do marido.
O cenário começou a modificar a partir da Revolução Industrial, já na metade final do século, quando as mulheres tomaram conta das fábricas e se tornaram uma força social em franca evidência.
5) Não seria muito agradável viver numa grande cidade.
Como escrevi nesse texto, antes dos carros tomarem conta dos grandes centros urbanos, viver numa grande cidade no século dezenove não era uma atividade muito agradável.
Imagine a cena: o ano é 1890 e você mora em Nova York. Convivendo ao seu lado, 200 mil cavalos. É animal que não acaba mais, você pensa. Mas isso é apenas parte do problema. Cada cavalo produz cerca de dez quilos de cocô por dia, e se a sua noção matemática anda apurada, você já deve ter entendido do que estamos falando aqui – duas mil toneladas de fezes de cavalo depositadas todos os dias nas ruas da cidade. Nova York estava completamente afogada em estrume – e junto com ele, seu vasto universo: urina, moscas, carcaças, sujeira, doenças. Não havia táxis, não havia Uber, não havia catraca livre. Em 1894, o Times de Londres estimava que até 1950 todas as ruas da cidade ficariam soterradas em 2,7 metros de profundidade de estrume de cavalo. Em Nova York, a projeção era que até 1930 os excrementos dos cavalos ascendessem às janelas dos terceiros andares. Fomos salvos no soar do gongo pelo veículo automotor.
E os cavalos eram apenas parte do problema. Em 1830, um levantamento dos bairros mais pobres de Leeds, no norte da Inglaterra, descobriu que muitas ruas tinham “esgoto flutuante” – certa rua, onde viviam 176 famílias, não era limpa há quinze longos anos. Em Londres, como aponta Bill Bryson, jogava-se no Tâmisa tudo que fosse malquisto: restos de comida, cadáveres de animais, fezes humanas, e muita, muita, sujeira. Vacas e carneiros eram levados para o Smithfield Market, o mais antigo mercado de carnes do Reino Unido, para serem transformados em bifes e costeletas – deixando pelo caminho, anualmente, mais de 40 mil toneladas de esterco. E isso tudo se somava aos dejetos de cães, patos, galinhas, porcos, seres humanos.
As grandes cidades eram porões de sujeira a céu aberto.
6) Não seria muito agradável morrer numa grande cidade.
Frequentar um sepultamento ou simplesmente passar por um cemitério era uma experiência desoladora. Havia uma série de relatos de pessoas que iam visitar um túmulo e eram derrubadas. Outras tantas desmaiavam com o cheiro durante os serviços religiosos.
Em 1899, o embaixador chinês foi questionado sobre sua opinião a respeito da Londres vitoriana no auge de sua grandeza imperial. Ele respondeu, laconicamente, “muito suja”. Era a atestação do óbvio. Com a imundície em vida e em morte, o resultado evidente era uma coleção de doenças. No século dezenove, as epidemias eram rotina nos grandes centros. Em 1832, a cólera matou mais de 60 mil britânicos – ela voltaria a ter outros surtos em 1848, 1854 e 1867. De 1850 a 1870, só a febre tifoide matava anualmente cerca de 1500 britânicos. De 1840 a 1910, a tosse convulsiva matava cerca de 10 mil crianças todos os anos. E isso para não falar do sarampo, da febre reumática, da varíola e de outras tantas doenças. Todas novas possibilidades para mortes prematuras, instantâneas e banais.
Em 1899, o embaixador chinês foi questionado sobre sua opinião a respeito da Londres vitoriana no auge de sua grandeza imperial. Ele respondeu, laconicamente, “muito suja”. Era a atestação do óbvio. Com a imundície em vida e em morte, o resultado evidente era uma coleção de doenças. No século dezenove, as epidemias eram rotina nos grandes centros. Em 1832, a cólera matou mais de 60 mil britânicos – ela voltaria a ter outros surtos em 1848, 1854 e 1867. De 1850 a 1870, só a febre tifoide matava anualmente cerca de 1500 britânicos. De 1840 a 1910, a tosse convulsiva matava cerca de 10 mil crianças todos os anos. E isso para não falar do sarampo, da febre reumática, da varíola e de outras tantas doenças. Todas novas possibilidades para mortes prematuras, instantâneas e banais.
7) Você provavelmente não conseguiria ler esse ou qualquer outro texto.
Dois séculos atrás, apenas uma pequena elite tinha acesso à alfabetização – as melhores estimativas apontavam para 12% do mundo alfabetizado. Desde então, chegamos a patamares jamais vistos. Mais do que 4 em cada 5 pessoas ao redor do mundo agora são capazes de ler. Entre 1990 e 2010, a taxa de alfabetização mundial subiu de 76% para cerca de 84%. No Nepal, apenas 17% das mulheres sabiam ler em 1990 – em 2010, esse número havia subido para 48%. Não é nenhum exagero afirmar que a população mundial jamais teve acesso sequer parecido à educação quanto a atual.
Caso você tivesse nascido no século 19, provavelmente pouco saberia a respeito da sua própria existência e do mundo ao redor, a não ser através de dedução e experiência. Mas apesar disso, nem tudo seriam espinhos. Liderado por mentes geniais, uma boa dose de revolução – industrial, científica e institucional – e o nascimento de uma efervescente sociedade de mercado, o planeta estava prestes a decolar e alcançar patamares jamais vistos. Entre a sujeira e a tragédia, num espaço de um século, a relação entre a humanidade e o progresso encontraria rumos nunca antes encontrados.
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