2 de nov. de 2018

A Guerrilha do Recalque

A ascensão de Jair Bolsonaro é atribuída, prioritariamente, ao sentimento antipetista de boa parte de seus eleitores. Diz respeito aos erros, descaminhos e à corrupção de um partido que, impermeável à crítica, vaga numa cegueira narcisista. A análise da onda bolsonarista deveria, no entanto, voltar o foco um pouco mais para motivações profundas de um grupo que se sente acuado pelo avanço fundamental das pautas emancipatórias que o Brasil tem abraçado.
Podem nem ser a maioria dos eleitores do capitão, composta também por uma massa difusa que, mesmo não concordando com ele, ou até não o suportando, vê a chance de romper com “tudo o que está aí”. Mas representam seu núcleo forte. Acham que é preciso endurecer sem qualquer ternura. Entupidos de medos e recalques, encontraram um líder para chamar de seu e agem sem limites contra “os ativismos” que este prometeu extinguir. Esquecem que são, eles mesmos, ativistas radicais numa democracia que lhes dá voz, mas exige limites.
O mal não é estranho a ninguém. Como diria Hannah Arendt, é banal. Todo ser humano tem seus demônios. É passível de sentir-se incomodado com quem ameaça seu espaço. Cria bodes expiatórios e chega a desejar a morte do vizinho. Grande parte, no entanto, após uma confissão interna, alcança uma visão crítica dos próprios arroubos. Evita externar sentimentos circunstantes perigosos, e faz prevalecer a moderação, sob o peso da lei ou da consciência.
O que anima os bolsonaristas de raiz é a completa ausência desse filtro. Cerceados em suas pulsões justiceiras, querem dar um basta na evolução dos costumes. Acham que têm o monopólio do bem. Uma arma na mão, uma Bíblia na cabeça é o ideal de sua nouvelle-vague. É uma vertente variada, que vem de diferentes estratos. Por exemplo, os que, ao se depararem com o cotista que beliscou uma vaga na universidade, enchem-se de revolta persecutória.
Passam por cima de qualquer contexto histórico. Dizem, como uma influenciadora digital recentemente postou, que história, sociologia e filosofia são drogas “piores que a maconha”. Gritam, sem pudor, que “índio é a raça mais desgraçada que existe”. Trancam-se em casa com protetores de ouvidos quando a parada gay invade sua praia. As pernas tremem diante do empoderamento feminino. “Essa altivez vai acabar”, ameaçam, ao ver a menina que vem e que passa.
Enxergam, nas artes, caprichos degenerados de “bêbados vagabundos mamadores das tetas do governo”. Têm horror à atividade intelectual. Querem ver a Amazônia transformada num “puta estacionamento” (do refrão satírico da Casseta Popular). Acham que uma guerra civil daria uma equilibrada nos excessos. Veneram grupos de extermínio e milícias. Não entendem o que o pessoal vê de especial nessa tal democracia. “Ser escravo” da Constituição, para eles, é constrangimento. E, justiça social, sinônimo de comunismo.
A não ser que, se eleito, baixe em Jair Bolsonaro um caboclo deixa-disso, é essa guerrilha que sustentará a sua pauta e lhe dará aleluias. Se isso ocorrer, é bom que Deus ou os ativistas da tolerância sejam capazes de, pacificamente, resistir ao novo dictat.

— Arnaldo Bloch
(O Globo, 16/10/2018)


Um comentário:

  1. Me senti um tanto atônita ante palavras pesadas embora cheias de verdades sufocadas na garganta, e proferidas sem temor e sem recalque.
    Acho um tanto precoce esse tiro. Os ânimos ainda estão cultivando frutos amargos que podem posteriormente envenenar a solidez de milhares de esperanças.
    Mas meu apoio às palavras, é total.
    Chega mesmo a emocionar.
    Verdades sempre tem o seu peso.

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